A decisão de internar minha mãe numa casa de idosos, tomada no final do ano passado e executada em janeiro deste ano, foi acompanhada de um temor que eu externei nas entrelinhas do post que copio abaixo, fixado na minha linha do tempo no Facebook no último dia 9:
"A IDADE E AS ARMADILHAS DA VIDA
Relutei muito para escrever este post. Não por medo de ser julgado, porque isso eu já sei que vou ser. Julgado e condenado por muitos, alguns em silêncio, outros pelas costas. Faz parte. Muito menos adiei a escrita por covardia em assumir o que vou escrever aí abaixo, pois não tenho vergonha da decisão que tomei. Relutei porque vou falar de um assunto que quase todo mundo finge que não existe ou esquece-se da possibilidade de ocorrer: a internação de um parente numa casa de repouso, asilo ou assemelhados.
Pois bem, vamos logo ao fato: na última segunda-feira, minha mãe foi para uma destas casas.
Foi não é bem o termo. Eu a coloquei lá, com a ajuda de pessoas da família muito queridas. Umas auxiliaram no processo de escolha, outras nas indicações, outras na colocação dela no lugar.
Por anos esta ideia jamais passou na minha cabeça. Muito menos quando comecei a trabalhar como voluntário na cozinha de uma destas casas, destinadas a idosos sem recursos. Até segunda, achava que tinha um compromisso moral: o de jamais "jogar minha mãe" num asilo.
Curiosamente, três dias depois de tomar tal atitude, não me acho um cretino. Não penso que a joguei num asilo. E não acho mais que quem toma tal decisão é um ingrato. Aí vem o meu primeiro aprendizado: não julgo mais quem toma esta atitude. Não sei os antecedentes de quem foi internado numa destas casas - se foi um bom ou mau pai, algo que pesa em alguns casos, mas não no meu, pois ela foi uma mãe maravilhosa. Não sei até que ponto a doença mental que acomete aquele idoso avançou. Não sei o tempo que aquela família tem para cuidar dele. E, sobretudo, não sei nada daquela história. Portanto, não vou julgar. Sei onde o calo aperta.
Há mais ou menos um ano e meio, descobrimos que minha mãe estava desenvolvendo o Mal de Alzheimer, uma doença filha da puta. Não há termo mais preciso. O Alzheimer é sorrateiro. Chegou, nela, em forma de uma inesperada agressividade, maltratando pessoas que ela sempre quis muito bem - eu e minhas sobrinhas, sempre muito atentas com ela. Não sabíamos que aquela raiva era a antessala da loucura - vamos ser claros, Alzheimer é uma demência senil, um processo de enlouquecimento gradativo. Aos poucos, o amor vira raiva. A fome vira esquecimento. A organização vira baderna. Nada sobrevive do mundo em que se vive.
Minha mãe sempre foi uma mulher impecavelmente limpa. Passou a não tomar banho. Sempre foi ativa. Passou a não cozinhar e depois a nem comprar a própria comida. Assinava jornais e TVs a cabo e os cancelava na mesma velocidade. Sua casa passou a ter teias de aranha gigantes, algo que ela odiava. Mas que ela não via. Quando via, esquecia de limpar.
E se a gente tentava intervir, a coisa virava um inferno. Brigas, ameaças, raiva, ofensas horríveis. Acusações que queríamos enlouquecê-la. Médico? Nem pensar. Se ia, nos xingava pelo caminho. Na frente dos especialistas, mostrava-se calma e apenas abalada pela morte de minha irmã, em 2006. Nada além da manipulação que o Alzheimer faz nas mentes.
Com muita determinação, aos poucos, fomos inserindo algumas mudanças para melhorar a vida dela. Primeiro, remédios, receitados por médicos que, finalmente, detectaram a doença, mesmo que tardiamente. Remédios dados escondidos, por cuidadoras que eram contratadas e inseridas com muito cuidado, porque qualquer mudança muito radical fazia a bomba estourar - e aí ela partia para cima das cuidadoras.
Os remédios sossegam um pouco (ou muito) a agressividade. Mas também vão apagando o resto da luz que há na pessoa. Não há meio termo. Aos poucos, ela foi parando de nos reconhecer - eu, que só venho ao Rio em raras ocasiões, já tinha de me apresentar há tempos. Chegava logo dizendo "oi, mãe, sou eu, Jorge, seu filho". Pouco antes da internação, num mesmo dia, fui chamado de marido, vizinho, de tudo, menos de filho.
Dói. E muito. Tomara que você nunca tenha noção do que estou dizendo.
Mesmo com uma estrutura em volta dela, o tratamento chegou a um ponto crucial. Por mais gente que você reúna em volta de um paciente de Alzheimer, ele nunca vai melhorar. É uma linha reta para a perda de consciência. E, ao contrário dos tempos passados, os dias atuais nos cobram uma conta cruel: quem toma conta destas pessoas? Quem vai dirigir o tratamento, fiscalizar, levar a médicos, conversar com o paciente - porque, embora sem conexão entre assuntos, eles falam, enquanto não chegam na fase aguda, quando viram bebês de colo tendo oito ou nove décadas de vida.
Antigamente, os doentes de Alzheimer eram os "caducos" ou "esclerosados". Havia a "tia solteirona" ou o tio que nunca trabalhou. Havia, nas famílias, gente com tempo e certa paciência para limpar uma pessoa de 80 anos que defecou nas calças ou que se urinou. E hoje? Quem, na nossa família, não trabalha? Não tem filhos? Não tem profissão? E, pera lá, isso não era injusto com o tio ou a tia?
E agora?
Pois é, agora só tem duas saídas: ou você fica na mão das cuidadoras e agências especializadas ou vai para as casas de repouso, asilos e assemelhados.
Enquanto mamãe ainda dava conta de telefonar, de se lembrar com quem estava falando, tocamos o esquema com cuidadoras e agências. A administração de folhas de ponto, salários e tudo mais é osso. Faltas são um problema, e constante. Só que o doente não pode ficar sujo, deitado, sem comida. E tome substituição... Aviso logo: é caríssimo. Mas valia a pena. Ela foi ganhando peso, parou de fumar e, mesmo se apagando aos poucos, estava numa linha reta. Uma degradação mental com certa dose de estabilidade.
Mas o Alzheimer é insidioso e, de uma hora para outra, tira tudo de você. Acabou a vontade dela de sair da cama. E cama, para idoso, é um perigo. Quedas, sono excessivo, escaras, pneumonia. Tudo é um grande risco. E desnecessário. Você paga caro por isso, ainda por cima.
Aí é preciso mudar, correr atras dela estrutura que seria algo parecido com uma creche. Sim, as casas de repouso são como creches, onde os idosos que estão neste processo de gradativo apagar das luzes mentais (e só estes, veja bem...) podem conviver com gente que conheceu os mesmos atores de Hollywood, os mesmos lugares do Rio. Ali eles estão com eles. Conversam entre si. E o pessoal de apoio os alimenta seis vezes por dia, separa a confusões, determina a hora de dormir e de acordar - algo que minha mãe não tinha mais.
A decisão de internar/hospedar seu pai/mãe numa casa destas é dura. Porque você sabe que ele ou ela só sai de lá em duas circunstâncias: ou foi maltratado ou morreu. Não há outras. Ele não ficará curado. Não vai melhorar. Não vai te chamar e pedir para ir embora - ele até pede, mas esquece-se no minuto seguinte. Ele só sai se a casa for uma bomba ou se adoecer e morrer.
Neste último caso, se a casa de repouso for boa, isso pode demorar mais de uma década. A saúde física de minha mãe é incrível. Ela vai durar um bom tempo até chegar o dia de sair deste planeta. Planeta este que ela nem tem mais noção que existe.
Escolhi um tipo de casa: poucos idosos, vista interessante, liberdade de horários para visita. Ela não está na cadeia. Ela está presa num mundo paralelo. Mas está viva. Pode ser vista, visitada, podem falar com ela. Enquanto ela der conta, vai ser bom. Depois, ela pode ir para um estágio quase fetal. Ainda assim, pode ser visitada.
Mesmo no momento atual, vai ser preciso um ritual para fortes. Agora é o de se apresentar a ela. E não esperar nada em troca, nem carinho, nem um olhar. Depois da entrada dela, estive na clínica duas vezes. Em ambas, ela olhou, me viu e não me reconheceu. Não sou o filho dela. Ela não lembra que teve filhos. Só às vezes. Mas são crianças que só ela vê. Talvez os filhos de outrora, talvez irmãos. Quem vai saber?
O ritual do futuro eu não sei. É outra coisa que o Alzheimer ensina. Viver o hoje. Aproveitar os momentos em que acende a luz e ela se lembra do que o nome Jorge quer dizer para ela - mesmo que esqueça logo depois.
A ida dela para esta casa vai me fazer vir ao Rio mensalmente. Vou aproveitar sempre a chance para dar carinho, sem esperar nem bom dia em troca. Eu sei que ela está partindo devagar. Não posso cobrar nada dela. Nada. Nada. Posso dar o máximo, que é isso: uma boa casa, onde ela receba atenção. Mais, não posso. Queria poder? Não sei. Como não posso, não me esforço para saber o que faria.
Sei que muita gente vai me achar um monstro. Direito delas. Outras vão me achar um cara sofrido. Nem tanto, mas é direito delas. Outras vão achar um monte de outras coisas, o que é direito de todos. Só eu e poucas pessoas, que encaramos essa barra, sabemos como é.
Taí. Espero que você nunca passe pelo que estou passando. Mas, se passar, pode me ligar. Estarei a seu lado. Afinal, eu sei como é."
Sua leitura atenta vai detectar que, sim, eu tinha um certo temor do julgamento alheio, ao contrário do que eu disse na primeira linha. A gente escamoteia os sentimentos e os medos a todo tempo. Não sou diferente. Mas, depois de escrever e ler e reler milhares de vezes este post, descobri, finalmente qual era meu medo: o de ser julgado e condenado pela própria família, já que a opinião dos amigos e dos colegas é algo muito distante para você tentar controlar ou saber de alguma forma.
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Papai, Vera, eu e mamãe, em um cruzeiro |
Mas com a família é diferente. Eles te conhecem numa intimidade que te intimida. Alguns sabe, por exemplo, que você comeu cocô quando era bebê (bom, agora todo mundo sabe, mas era segredo reservado aos membros do clã...). Outros sabem com quem você namorou aos 13 anos, as brigas que teve, o dinheiro que pegou emprestado... Família é foda, meus amigos.
E eu tinha um medo imenso do que três pessoas da família, em especial, iriam achar. A saber, os primos Tião e Paulo e a prima Sandra.
Tião e Paulo, em verdade, são primos da minha mãe; a Sandra, minha prima e sobrinha da dona Nair. Os três também gozavam da simpatia do meu pai, algo raríssimo em se tratando da família da mamãe...
Tião nasceu quando minha mãe tinha uns seis ou oito anos, não sei bem. É um cara conservador e discreto, dono de um Opala por décadas (se bobear, ainda tem...), mora na mesma casa desde que eu me entendo por gente e, acima de tudo, é um devotado amigo de mamãe, tendo socorrido ela com solidariedade e dinheiro inúmeras vezes - eu mesmo já fui à Penha, em priscas eras, para pedir ajuda, que me foi dada imediatamente e paga nos prazos mais familiares possíveis e livre de juros.
Paulo veio ao mundo bem depois. Ele era um segredo de família vivo. Todo mundo, menos ele, sabia que tinha sido adotado na maternidade, um murmúrio de coxia que chegava a todos nós assim que nossos pais julgassem que éramos adultos, num curioso rito de passagem. O motivo de sua adoção? Minha tia-avó Dindinha (de nome Nair como minha mãe e madrinha dela) era a única das irmãs a não ter filhos. Uma humilhação perto dos 3 da mãe do Tião, dos 12 da minha avó e dos mais de 20 da outra irmã. Humilhação piorada pelos atos de dona Maria Auxiliadora, nas internas dona Marocas (apelido que ela detestava), que mandava mamãe da casa dela, onde a comida era pouca e os filhos, muitos, para a casa da irmã, local onde moravam duas pessoas apenas. E depois voltava para buscar e colocar mamãe para trabalhar, para engrossar o feijão de casa. Atos naturais, mas que cansaram a irmã, que foi exercer o instinto materno com o Paulão - um cara 100% tranquilo, bonachão e a cara da Zona Sul, onde eles moravam na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, 6, em cima da agência do Banco Boavista, "toda vida com você" (só que não, pois foi vendido, contrariando o slogan).
(E vou abrir este parênteses para contar a curiosa forma como acabou este segredo: um dia, o Paulo encontrou uma ex-namorada, que contou a ele um sonho. Nele, minha tia avó chegava-se para ela, que se chama Célia, e contava que o Paulo era adotado, mas que sempre teve o amor de um filho querido e sonhado. Anos depois, Célia encontrou Paulo e contou o sonho. Como ele sempre desconfiou de ser dois tons mais moreno que a mãe e o pai, chamado por todos nós de vô Juca, chegou logo na minha mãe, contou o sonho e perguntou se era verdade. Mamãe, manteiga derretida, caiu em lágrimas pela força da história, sem conseguir negar. Paulo ficou felicíssimo. E se sentiu ainda mais amado, sem se interessar pela história dos pais biológicos. Para ele, importava mesmo era quem o amou e cuidou dele).
Já a Sandra era a prima mais nova da irmã que nasceu imediatamente após minha mãe, a tia Nagmar. São três irmãs: Rosângela (por quem eu era apaixonado, na altura dos meus seis anos, pois achava aquela moça loura de 16 a coisa mais linda do mundo), Olinda e a Sandra, mais perto de mim e que implicava comigo horrores... O mundo gira, a gente cresce e a Sandra é, hoje, a chamada boa praça. Sou fã dela. Como é servidora federal, ela fornece o plano de saúde para mamãe, que eu pago. Mas vocês nem imaginam o preço que é. Algo irreal para quem tem 85 anos... Não fosse a Sandra, mamãe estaria no sereno. Completamente no sereno...
E foi a Sandra a primeira a saber, dias depois, ainda no Rio. Aliás, em Niterói. Fui até lá, para pegar o cartão do plano e contar sobre a decisão de internar. Da Sandra, confesso, esperava apoio. E foi o que recebi. "Jorginho, você está certo". E depois passou a desfilar episódios de visitas em que ela achou estranho o fato de mamãe dormir constantemente e de não ver panela no fogo.
Bom, com o apoio da Sandra, que ficou encarregada de avisar aos demais parentes de Niterói, faltavam Tião e Paulo.
Por quase 15 dias eu relutei ligar para o Tião. Pensei em bronca, em reprovação, em queixas pela internação... Julguei o cara. E mal. Como sempre. Sou péssimo nisso. Ainda bem que não encasquetei em ser juiz.
Ontem à noite, finalmente, venci o medo e a covardia. Coração aos pulos, liguei para ele. Conversamos uns 15 minutos. E ele aprovou a medida. Confesso que foi como se abrisse o céu e uma luz viesse de lá, igual nos filmes. Pelo respeito que tenho ao Tião e pelo fim dos meus temores. Em linhas gerais, ele classificou a internação como inevitável, pelo estado mental da mamãe, e se mostrou consolado por ela estar em lugar mais seguro e controlado. Disse que vai visitá-la sempre que puder.
Depois, liguei para o Paulo, que já sabia. Sandra o avisara. Foi outro que reagiu bem e relatou que, numa das últimas visitas, saiu de lá chocado: a cuidadora (não sei quem era e nem quero mais saber) trancara mamãe em casa e a deixara só. Ele só pode falar com ela por trás da porta, que é gradeada desde sempre, já que se trata de um apartamento térreo na Lapa. Descabelada, falando coisas sem nexo e atrás de uma grade, ela era, para ele, naquele momento, a imagem da loucura.
Dureza ouvir isso e raciocinar que o que você gastava e o tanto que a Fernanda se desdobrava para resolver os problemas no Rio deveriam ter sido retribuídos com um trabalho de mais qualidade pelos profissionais contratados. Mas deixa para lá... Fica na conta do destino.
O fato é que essa aprovação familiar me deu um alento especial numa segunda-feira muito ruim no trabalho. Logo depois, liguei na casa onde ela está e perguntei. Está dormindo melhor, comendo bem e tocando a vida. Fui aliviado para casa, jantei e dormi. Acordei às 6h, no breu que este horário de verão dá aos pais de crianças na fronteira do Ensino Fundamental com o Médio, e aproveitei para conferir notícias, e-mails e face enquanto me arrumava. E lá estava este recadinho da Fernanda...
oi, nem te contei, mas visitei a vovó duas vezes desde a mudança dela. achei ela bem, mais "acordada", ela percebeu que mudou de lugar. em uma das vezes reclamou que la tinha "barulho" (acho que por ter mais gente) e era "cheio de velhas feias", hahahah. da segunda vez, acompanhei o almoço deles e ela comeu bem...
A cara da minha mãe reclamar das "velhas feias". Mas é consolador o fato de que a vida dela, lá dentro, é melhor que aqui fora. Que o que vale não é gastar rios de dinheiro, mas gastar certo. E, fundamentalmente, que é melhor não julgar demais os outros, nem ficar esperando reações, pois isso reflete o que você faria se estivesse no lugar deles, não o que eles pensam. Descobri, isso sim, que se qualquer um tomasse a minha atitude, eu seria um julgador implacável do "mau filho". Tremenda bobagem minha. Não me cabe julgar. Eis aí mais um aprendizado desta caminhada ao lado do Alzheimer.
Não julgueis. Não para não serdes julgados. Não julgueis porque você não sabe nada do que se passa na vida e no íntimo de cada um.
Bom dia para vocês todos...