quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Sete meses depois

Foi um dia estranho aquele 10 de fevereiro.
Acordei com uma certa sensação de leveza. Uma estranha paz. Tudo parecia ser bem e ir bem. Afinal, mamãe estava na clínica e as notícias que chegavam davam conta que ela melhorara da tosse. Estava, ainda, um tanto alheia, mas seguia com suas limitadas interações. Comia sozinha, tentava driblar o almoço (sempre foi ruim de comer...) e dava escândalos na hora do banho, ainda mais se fosse dado por um homem. Era pudica. Sempre foi.
Apesar da tosse e da aparente tristeza que mostrava, eu acreditava que iria se recuperar. 
De certa forma, estava certo. De certa forma, completamente errado. Depende do ângulo de visão.
Pois bem, eram umas 10h, não mais, quando toca o telefone. Minha mulher. Normal. Andreia me liga muito, nos falamos, sei lá, umas dez vezes por dia.
Não eram boas notícias.
"Amor, infelizmente sua mãe faleceu esta madrugada. Morreu dormindo".
O chão abriu numa vala sem fim. Comecei a cair no meio do nada, sensação que já experimentara meses antes e que é agoniante por não ter fim. Você não sabe como começa ou termina. Só se corrói de culpa, dor, solidão. Passa tudo na cabeça. Culpa, por que você acha que ela morreu por estar numa casa de idosos na qual você a colocou. Dor pela partida. Solidão pela orfandade. Triste, mas um cara de 49 anos também fica órfão. E sente. Não me venha dizer que não: sente sim.
Os braços amigos ajudam você a se reequilibrar. Não há outra saída. É preciso se levantar. O Alzheimer venceu a guerra. Ela morreu, afinal, por que não soube mais puxar a secreção do pulmão e cuspir. A popular escarrada. Não sabia mais fazer. Era mais um pedaço da vida que tinha desaprendido e que foi fatal.
Mas a culpa é sua, na sua cabeça.
Demorei sete meses para digerir isso. Não, não foi culpa minha, embora não faltassem dedos em riste investindo contra mim até no velório - não por isso, mas por discussões familiares que não vêm ao caso. A mim, naquele momento, cabia apenas e tão somente fazer o que a sociedade demandava: chorar o mínimo possível, pegar a situação pela unha e tomar as providências possíveis. Não sem o braço forte da Andreia do lado, que começou a tratar da gestão da morte, uma das coisas que os vivos sempre esquecem que existe.
Sim, pois viver é mole perto de morrer. Quando nasce o filho, você pega o documento na maternidade, vai no cartório e, pimba!, em segundos está oficialmente existindo mais um brasileiro. Para deixar de existir é dureza. Morrer precisa de laudo e atestado médico. Precisa registrar em cartório, Precisa levar para o cemitério, programar horário de enterro, escolher caixão, flor, comandar velório, maquiagem do morto... E, muitas vezes, precisa fazer exumação. Já fiz duas. Só eu faço na família. O mais novo tem esta tarefa: enterrar todo mundo e depois abrir o baú dos ossos e olhar lá dentro. O que é muito, mas muito foda.
Desculpem o palavrão. Mas é foda mesmo. O primeiro foi meu pai, com mais de 30 anos de morto e as meias intactas, Nunca esqueci as meias, repletas de falanges, falanginhas, falangetas, tarsos e metatarsos. Na próxima vida quero ser meia, indestrutível. A primeira exumação é dura. As outras você tira de letra. Desta vez não era preciso exumar. Menos mal. Mas dói saber que ali estão seus pais e suas irmãs. Ou seja, da família original, resta você e seu irmão. O povo que te criou já foi. Você ficou para enterrar, exumar e chorar. Foda, outra vez.
Mas estávamos lá, ainda na noite de 10 de fevereiro. Na casa da cunhada, amparado, mas decidindo caixão, negociando se a alça era dourada ou não, se tinha Cristo grande ou pequeno na tampa, com o papa-defunto, e mandando fazer maquiagem. Acertando pagamento, cartório e tudo mais. Vida prática. Nas horas vagas, choro e lembranças. Todas de antes da doença. Isso o Alzheimer faz: você também esquece o período em que seu familiar foi abatido por este mal. Mas nem todo o tempo. Sempre vinha à mente o último encontro. O olhar vazio dela, tentando entender quem era aquele homem que a beijava no rosto e dizia que ela era linda. Que ela agradecia apenas com um "obrigado, senhor".  
Velório, sepultamento e as demais histórias são sempre iguais. Copie e cole qualquer uma. Pessoas choram, outras ficam de prontidão, às vezes dá briga, às vezes, não. O velório da mamãe foi igual, naquele Jardim da Saudade de Sulacap. O bom foi ver e rever pessoas que participaram de minha vida, como o Renato, a Raquel, a Nanda, a tia Marina, as primas Sandra e Cláudia e o primo Paulo, que me deu uma fita com falas da mamãe. Fita que não tive coragem de ver até hoje. Pudera: só hoje, sete meses depois, voltei a escrever aqui.
Bom, estou fazendo meu acompanhamento para ver a chance de Alzheimer. Aparentemente, nada ainda comigo. Mas fico de olho. Por poucos anos, vi como era. Meu amigo Toninho assistiu por uma década. E foi lá, assim como o Raul. 
Bom, num fim de tarde do dia 11 de fevereiro, o corpo de mamãe foi para o mesmo espaço onde estão meu pai e minhas irmãs. Fechou-se um ciclo. Acabou a doença. 
Mas não este blog. Ainda volto aqui. O luto acabou hoje, Tem muita história para contar ainda. Existe o banco, uma das coisas mais cruéis do mundo.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Jogos psicológicos com os familiares

Uma das coisas que mais me irrita no mundo é o coitadismo de alguns ex-funcionários. Não falo nada do cara que foi sacaneado e demitido injustamente. Falo daqueles que fazem um trabalho com falhas e que, quando demitidos, culpam o chefe, o patrão, se dizem injustiçados. Nunca, jamais, em tempo algum assumem seus erros.

Na vida com Alzheimer, isso é ainda pior. Porque não há cuidador que não se apresente como gênios salvadores de seus parentes. Mas o que eles são, de fato, é trabalhadores. Uns bons, outros ruins...

Durante o tempo em que minha mãe ficou neste esquema, houve bons e maus momentos. Faltas, atrasos, dias em que ela foi deixada sozinha sem nenhum dos parentes soubessem - moro a 1.200 quilômetros de distância e minha sobrinha está grávida e morava distante.

No dia em que decidi internar minha mãe, cheguei de surpresa e lá estava uma cuidadora substituta, que passou a desfilar alguns problemas no tratamento da minha mãe, que raramente saía da cama e comia cada vez menos. Ali eu vi que aquela etapa do tratamento estava vencendo.

Pois bem, a internamos e o processo de adaptação tem, como era de se esperar, seus problemas. Uma semana atrás, minha sobrinha relatou que ela estava animada e que beijara até seu ventre de grávida. Nesta semana, ela chegou lá e encontrou um quadro diferente. Mamãe estava fechada, calada, sem querer andar, com uma baita tosse. Na véspera, tinha ido a um neurologista, que confirmou o diagnóstico e a medicação. No dia seguinte, foi a um pneumologista. Diagnóstico: bronquite causada por fumo.

O quadro mudou. Assustou. A quem viu e a quem está à distância.

Para piorar, eis que, na noite de ontem, recebo mensagens da antiga cuidadora. Numa, cobranças por direitos trabalhistas que ela mesma diz não ter direito. Dá para entender? Não. Mas pior foi a outra... Repare o tom:
"Estou horrorizada com o que vi, eu disse que você  estava dando o passaporte para sua mãe, eu e a Eliane, magra, não fala e não esta andando, está com o joelho machucado."
Detalhe: segundo pessoas que a visitaram, nada disso ocorreu, fora, claro, o desânimo dela dos últimos dias. Talvez causado pelo fato de que, como me alertou o pneumologista em conversa telefônica, mamãe não coordena mais o ato de tossir, o que acumula secreção nos pulmões e deixa ela mais cansada e desanimada.

Quanto ao passaporte, eu rasgo logo o verbo: é para a morte mesmo. É isso que ela quer dizer. Em suma, você está matando sua mãe. E aí você se pergunta: que tipo de jogo é este?

O jogo é claro: empurrar mais culpa goela abaixo, para que você se sinta um filho da puta e retome o esquema anterior, onde todo mundo tinha um bom salário e deixava minha mãe na cama "porque ela não queria levantar". Um esquema em que os telefonemas de pedidos de remédios eram sempre feitos quando eles acabavam, nunca antes, o que nos causava imenso transtorno. Em que a comida era pedida em cima do laço e com a tática era fomentar críticas aos parentes que não estavam presentes. Um esquema que sempre desconfiei e que fica nítido, agora...

Sinceramente, vou simplesmente ignorar as provocações. As queixas legais enviarei a meu advogado, para que ele trate do assunto. Já o terrorismo, vou ignorar. Não sem antes armazenar os diálogos. A vida me ensinou a guardar tudo, todas as provas. Um dia, podem ser úteis.

E quanto a mim? Bom, a culpa sempre foi fodida. Uma a mais não fará diferença. O que me chateia é o joguinho. Mas, fazer o quê? Isso é a humanidade em que vivemos. Eu posso deixar a mãe dele de cama o dia inteiro. Ele não pode decidir o que é melhor para ela. É essa a lógica enviesada daqueles que perdem o salário por não fazer o seu trabalho da melhor forma possível.

Entenderam a munha irritação?

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

O medo da reação familiar

A decisão de internar minha mãe numa casa de idosos, tomada no final do ano passado e executada em janeiro deste ano, foi acompanhada de um temor que eu externei nas entrelinhas do post que copio abaixo, fixado na minha linha do tempo no Facebook no último dia 9:

"A IDADE E AS ARMADILHAS DA VIDA

Relutei muito para escrever este post. Não por medo de ser julgado, porque isso eu já sei que vou ser. Julgado e condenado por muitos, alguns em silêncio, outros pelas costas. Faz parte. Muito menos adiei a escrita por covardia em assumir o que vou escrever aí abaixo, pois não tenho vergonha da decisão que tomei. Relutei porque vou falar de um assunto que quase todo mundo finge que não existe ou esquece-se da possibilidade de ocorrer: a internação de um parente numa casa de repouso, asilo ou assemelhados.
Pois bem, vamos logo ao fato: na última segunda-feira, minha mãe foi para uma destas casas.
Foi não é bem o termo. Eu a coloquei lá, com a ajuda de pessoas da família muito queridas. Umas auxiliaram no processo de escolha, outras nas indicações, outras na colocação dela no lugar.
Por anos esta ideia jamais passou na minha cabeça. Muito menos quando comecei a trabalhar como voluntário na cozinha de uma destas casas, destinadas a idosos sem recursos. Até segunda, achava que tinha um compromisso moral: o de jamais "jogar minha mãe" num asilo.
Curiosamente, três dias depois de tomar tal atitude, não me acho um cretino. Não penso que a joguei num asilo. E não acho mais que quem toma tal decisão é um ingrato. Aí vem o meu primeiro aprendizado: não julgo mais quem toma esta atitude. Não sei os antecedentes de quem foi internado numa destas casas - se foi um bom ou mau pai, algo que pesa em alguns casos, mas não no meu, pois ela foi uma mãe maravilhosa. Não sei até que ponto a doença mental que acomete aquele idoso avançou. Não sei o tempo que aquela família tem para cuidar dele. E, sobretudo, não sei nada daquela história. Portanto, não vou julgar. Sei onde o calo aperta.
Há mais ou menos um ano e meio, descobrimos que minha mãe estava desenvolvendo o Mal de Alzheimer, uma doença filha da puta. Não há termo mais preciso. O Alzheimer é sorrateiro. Chegou, nela, em forma de uma inesperada agressividade, maltratando pessoas que ela sempre quis muito bem - eu e minhas sobrinhas, sempre muito atentas com ela. Não sabíamos que aquela raiva era a antessala da loucura - vamos ser claros, Alzheimer é uma demência senil, um processo de enlouquecimento gradativo. Aos poucos, o amor vira raiva. A fome vira esquecimento. A organização vira baderna. Nada sobrevive do mundo em que se vive.
Minha mãe sempre foi uma mulher impecavelmente limpa. Passou a não tomar banho. Sempre foi ativa. Passou a não cozinhar e depois a nem comprar a própria comida. Assinava jornais e TVs a cabo e os cancelava na mesma velocidade. Sua casa passou a ter teias de aranha gigantes, algo que ela odiava. Mas que ela não via. Quando via, esquecia de limpar.
E se a gente tentava intervir, a coisa virava um inferno. Brigas, ameaças, raiva, ofensas horríveis. Acusações que queríamos enlouquecê-la. Médico? Nem pensar. Se ia, nos xingava pelo caminho. Na frente dos especialistas, mostrava-se calma e apenas abalada pela morte de minha irmã, em 2006. Nada além da manipulação que o Alzheimer faz nas mentes.
Com muita determinação, aos poucos, fomos inserindo algumas mudanças para melhorar a vida dela. Primeiro, remédios, receitados por médicos que, finalmente, detectaram a doença, mesmo que tardiamente. Remédios dados escondidos, por cuidadoras que eram contratadas e inseridas com muito cuidado, porque qualquer mudança muito radical fazia a bomba estourar - e aí ela partia para cima das cuidadoras.
Os remédios sossegam um pouco (ou muito) a agressividade. Mas também vão apagando o resto da luz que há na pessoa. Não há meio termo. Aos poucos, ela foi parando de nos reconhecer - eu, que só venho ao Rio em raras ocasiões, já tinha de me apresentar há tempos. Chegava logo dizendo "oi, mãe, sou eu, Jorge, seu filho". Pouco antes da internação, num mesmo dia, fui chamado de marido, vizinho, de tudo, menos de filho.
Dói. E muito. Tomara que você nunca tenha noção do que estou dizendo.
Mesmo com uma estrutura em volta dela, o tratamento chegou a um ponto crucial. Por mais gente que você reúna em volta de um paciente de Alzheimer, ele nunca vai melhorar. É uma linha reta para a perda de consciência. E, ao contrário dos tempos passados, os dias atuais nos cobram uma conta cruel: quem toma conta destas pessoas? Quem vai dirigir o tratamento, fiscalizar, levar a médicos, conversar com o paciente - porque, embora sem conexão entre assuntos, eles falam, enquanto não chegam na fase aguda, quando viram bebês de colo tendo oito ou nove décadas de vida.
Antigamente, os doentes de Alzheimer eram os "caducos" ou "esclerosados". Havia a "tia solteirona" ou o tio que nunca trabalhou. Havia, nas famílias, gente com tempo e certa paciência para limpar uma pessoa de 80 anos que defecou nas calças ou que se urinou. E hoje? Quem, na nossa família, não trabalha? Não tem filhos? Não tem profissão? E, pera lá, isso não era injusto com o tio ou a tia?
E agora?
Pois é, agora só tem duas saídas: ou você fica na mão das cuidadoras e agências especializadas ou vai para as casas de repouso, asilos e assemelhados.
Enquanto mamãe ainda dava conta de telefonar, de se lembrar com quem estava falando, tocamos o esquema com cuidadoras e agências. A administração de folhas de ponto, salários e tudo mais é osso. Faltas são um problema, e constante. Só que o doente não pode ficar sujo, deitado, sem comida. E tome substituição... Aviso logo: é caríssimo. Mas valia a pena. Ela foi ganhando peso, parou de fumar e, mesmo se apagando aos poucos, estava numa linha reta. Uma degradação mental com certa dose de estabilidade.
Mas o Alzheimer é insidioso e, de uma hora para outra, tira tudo de você. Acabou a vontade dela de sair da cama. E cama, para idoso, é um perigo. Quedas, sono excessivo, escaras, pneumonia. Tudo é um grande risco. E desnecessário. Você paga caro por isso, ainda por cima.
Aí é preciso mudar, correr atras dela estrutura que seria algo parecido com uma creche. Sim, as casas de repouso são como creches, onde os idosos que estão neste processo de gradativo apagar das luzes mentais (e só estes, veja bem...) podem conviver com gente que conheceu os mesmos atores de Hollywood, os mesmos lugares do Rio. Ali eles estão com eles. Conversam entre si. E o pessoal de apoio os alimenta seis vezes por dia, separa a confusões, determina a hora de dormir e de acordar - algo que minha mãe não tinha mais.
A decisão de internar/hospedar seu pai/mãe numa casa destas é dura. Porque você sabe que ele ou ela só sai de lá em duas circunstâncias: ou foi maltratado ou morreu. Não há outras. Ele não ficará curado. Não vai melhorar. Não vai te chamar e pedir para ir embora - ele até pede, mas esquece-se no minuto seguinte. Ele só sai se a casa for uma bomba ou se adoecer e morrer.
Neste último caso, se a casa de repouso for boa, isso pode demorar mais de uma década. A saúde física de minha mãe é incrível. Ela vai durar um bom tempo até chegar o dia de sair deste planeta. Planeta este que ela nem tem mais noção que existe.
Escolhi um tipo de casa: poucos idosos, vista interessante, liberdade de horários para visita. Ela não está na cadeia. Ela está presa num mundo paralelo. Mas está viva. Pode ser vista, visitada, podem falar com ela. Enquanto ela der conta, vai ser bom. Depois, ela pode ir para um estágio quase fetal. Ainda assim, pode ser visitada.
Mesmo no momento atual, vai ser preciso um ritual para fortes. Agora é o de se apresentar a ela. E não esperar nada em troca, nem carinho, nem um olhar. Depois da entrada dela, estive na clínica duas vezes. Em ambas, ela olhou, me viu e não me reconheceu. Não sou o filho dela. Ela não lembra que teve filhos. Só às vezes. Mas são crianças que só ela vê. Talvez os filhos de outrora, talvez irmãos. Quem vai saber?
O ritual do futuro eu não sei. É outra coisa que o Alzheimer ensina. Viver o hoje. Aproveitar os momentos em que acende a luz e ela se lembra do que o nome Jorge quer dizer para ela - mesmo que esqueça logo depois.
A ida dela para esta casa vai me fazer vir ao Rio mensalmente. Vou aproveitar sempre a chance para dar carinho, sem esperar nem bom dia em troca. Eu sei que ela está partindo devagar. Não posso cobrar nada dela. Nada. Nada. Posso dar o máximo, que é isso: uma boa casa, onde ela receba atenção. Mais, não posso. Queria poder? Não sei. Como não posso, não me esforço para saber o que faria.
Sei que muita gente vai me achar um monstro. Direito delas. Outras vão me achar um cara sofrido. Nem tanto, mas é direito delas. Outras vão achar um monte de outras coisas, o que é direito de todos. Só eu e poucas pessoas, que encaramos essa barra, sabemos como é.
Taí. Espero que você nunca passe pelo que estou passando. Mas, se passar, pode me ligar. Estarei a seu lado. Afinal, eu sei como é."

Sua leitura atenta vai detectar que, sim, eu tinha um certo temor do julgamento alheio, ao contrário do que eu disse na primeira linha. A gente escamoteia os sentimentos e os medos a todo tempo. Não sou diferente. Mas, depois de escrever e ler e reler milhares de vezes este post, descobri, finalmente qual era meu medo: o de ser julgado e condenado pela própria família, já que a opinião dos amigos e dos colegas é algo muito distante para você tentar controlar ou saber de alguma forma.

Papai, Vera, eu e mamãe, em um cruzeiro
Mas com a família é diferente. Eles te conhecem numa intimidade que te intimida. Alguns sabe, por exemplo, que você comeu cocô quando era bebê (bom, agora todo mundo sabe, mas era segredo reservado aos membros do clã...). Outros sabem com quem você namorou aos 13 anos, as brigas que teve, o dinheiro que pegou emprestado... Família é foda, meus amigos.

E eu tinha um medo imenso do que três pessoas da família, em especial, iriam achar. A saber, os primos Tião e Paulo e a prima Sandra.

Tião e Paulo, em verdade, são primos da minha mãe; a Sandra, minha prima e sobrinha da dona Nair. Os três também gozavam da simpatia do meu pai, algo raríssimo em se tratando da família da mamãe...

Tião nasceu quando minha mãe tinha uns seis ou oito anos, não sei bem. É um cara conservador e discreto, dono de um Opala por décadas (se bobear, ainda tem...), mora na mesma casa desde que eu me entendo por gente e, acima de tudo, é um devotado amigo de mamãe, tendo socorrido ela com solidariedade e dinheiro inúmeras vezes - eu mesmo já fui à Penha, em priscas eras, para pedir ajuda, que me foi dada imediatamente e paga nos prazos mais familiares possíveis e livre de juros.

Paulo veio ao mundo bem depois. Ele era um segredo de família vivo. Todo mundo, menos ele, sabia que tinha sido adotado na maternidade, um murmúrio de coxia que chegava a todos nós assim que nossos pais julgassem que éramos adultos, num curioso rito de passagem. O motivo de sua adoção? Minha tia-avó Dindinha (de nome Nair como minha mãe e madrinha dela) era a única das irmãs a não ter filhos. Uma humilhação perto dos 3 da mãe do Tião, dos 12 da minha avó e dos mais de 20 da outra irmã. Humilhação piorada pelos atos de dona Maria Auxiliadora, nas internas dona Marocas (apelido que ela detestava), que mandava mamãe da casa dela, onde a comida era pouca e os filhos, muitos, para a casa da irmã, local onde moravam duas pessoas apenas. E depois voltava para buscar e colocar mamãe para trabalhar, para engrossar o feijão de casa. Atos naturais, mas que cansaram a irmã, que foi exercer o instinto materno com o Paulão - um cara 100% tranquilo, bonachão e a cara da Zona Sul, onde eles moravam na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, 6, em cima da agência do Banco Boavista, "toda vida com você" (só que não, pois foi vendido, contrariando o slogan).

(E vou abrir este parênteses para contar a curiosa forma como acabou este segredo: um dia, o Paulo encontrou uma ex-namorada, que contou a ele um sonho. Nele, minha tia avó chegava-se para ela, que se chama Célia, e contava que o Paulo era adotado, mas que sempre teve o amor de um filho querido e sonhado. Anos depois, Célia encontrou Paulo e contou o sonho. Como ele sempre desconfiou de ser dois tons mais moreno que a mãe e o pai, chamado por todos nós de vô Juca, chegou logo na minha mãe, contou o sonho e perguntou se era verdade. Mamãe, manteiga derretida, caiu em lágrimas pela força da história, sem conseguir negar. Paulo ficou felicíssimo. E se sentiu ainda mais amado, sem se interessar pela história dos pais biológicos. Para ele, importava mesmo era quem o amou e cuidou dele).

Já a Sandra era a prima mais nova da irmã que nasceu imediatamente após minha mãe, a tia Nagmar. São três irmãs: Rosângela (por quem eu era apaixonado, na altura dos meus seis anos, pois achava aquela moça loura de 16 a coisa mais linda do mundo), Olinda e a Sandra, mais perto de mim e que implicava comigo horrores... O mundo gira, a gente cresce e a Sandra é, hoje, a chamada boa praça. Sou fã dela. Como é servidora federal, ela fornece o plano de saúde para mamãe, que eu pago. Mas vocês nem imaginam o preço que é. Algo irreal para quem tem 85 anos... Não fosse a Sandra, mamãe estaria no sereno. Completamente no sereno...

E foi a Sandra a primeira a saber, dias depois, ainda no Rio. Aliás, em Niterói. Fui até lá, para pegar o cartão do plano e contar sobre a decisão de internar. Da Sandra, confesso, esperava apoio. E foi o que recebi. "Jorginho, você está certo". E depois passou a desfilar episódios de visitas em que ela achou estranho o fato de mamãe dormir constantemente e de não ver panela no fogo. 

Bom, com o apoio da Sandra, que ficou encarregada de avisar aos demais parentes de Niterói, faltavam Tião e Paulo.

Por quase 15 dias eu relutei ligar para o Tião. Pensei em bronca, em reprovação, em queixas pela internação... Julguei o cara. E mal. Como sempre. Sou péssimo nisso. Ainda bem que não encasquetei em ser juiz.

Ontem à noite, finalmente, venci o medo e a covardia. Coração aos pulos, liguei para ele. Conversamos uns 15 minutos. E ele aprovou a medida. Confesso que foi como se abrisse o céu e uma luz viesse de lá, igual nos filmes. Pelo respeito que tenho ao Tião e pelo fim dos meus temores. Em linhas gerais, ele classificou a internação como inevitável, pelo estado mental da mamãe, e se mostrou consolado por ela estar em lugar mais seguro e controlado. Disse que vai visitá-la sempre que puder.

Depois, liguei para o Paulo, que já sabia. Sandra o avisara. Foi outro que reagiu bem e relatou que, numa das últimas visitas, saiu de lá chocado: a cuidadora (não sei quem era e nem quero mais saber) trancara mamãe em casa e a deixara só. Ele só pode falar com ela por trás da porta, que é gradeada desde sempre, já que se trata de um apartamento térreo na Lapa. Descabelada, falando coisas sem nexo e atrás de uma grade, ela era, para ele, naquele momento, a imagem da loucura. 

Dureza ouvir isso e raciocinar que o que você gastava e o tanto que a Fernanda se desdobrava para resolver os problemas no Rio deveriam ter sido retribuídos com um trabalho de mais qualidade pelos profissionais contratados. Mas deixa para lá... Fica na conta do destino.

O fato é que essa aprovação familiar me deu um alento especial numa segunda-feira muito ruim no trabalho. Logo depois, liguei na casa onde ela está e perguntei. Está dormindo melhor, comendo bem e tocando a vida. Fui aliviado para casa, jantei e dormi. Acordei às 6h, no breu que este horário de verão dá aos pais de crianças na fronteira do Ensino Fundamental com o Médio, e aproveitei para conferir notícias, e-mails e face enquanto me arrumava. E lá estava este recadinho da Fernanda...

oi, nem te contei, mas visitei a vovó duas vezes desde a mudança dela. achei ela bem, mais "acordada", ela percebeu que mudou de lugar. em uma das vezes reclamou que la tinha "barulho" (acho que por ter mais gente) e era "cheio de velhas feias", hahahah. da segunda vez, acompanhei o almoço deles e ela comeu bem...

A cara da minha mãe reclamar das "velhas feias". Mas é consolador o fato de que a vida dela, lá dentro, é melhor que aqui fora. Que o que vale não é gastar rios de dinheiro, mas gastar certo. E, fundamentalmente, que é melhor não julgar demais os outros, nem ficar esperando reações, pois isso reflete o que você faria se estivesse no lugar deles, não o que eles pensam. Descobri, isso sim, que se qualquer um tomasse a minha atitude, eu seria um julgador implacável do "mau filho". Tremenda bobagem minha. Não me cabe julgar. Eis aí mais um aprendizado desta caminhada ao lado do Alzheimer.

Não julgueis. Não para não serdes julgados. Não julgueis porque você não sabe nada do que se passa na vida e no íntimo de cada um.

Bom dia para vocês todos...

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Ironias da vida...

Assim como eu, meu pai teve dois casamentos. A diferença é que ele, em cada um, deixou um casal de filhos - e alguns abortos. Eu sairei da vida com duas filhas apenas em um casamento - e nenhum aborto. Com a Hermocinda Neith, sua primeira esposa, meu pai teve Eliane Maria e Carlos Alberto. Com mamãe, Vera Lúcia e eu, Jorge Eduardo. O velho adorava nomes duplos.


Estranhamente, a duplicidade não foi só nos nomes. Quando eu nasci, fui recebido numa família estranhamente dividida entre "dois times". O clássico Os filhos do primeiro casamento X Os filhos do segundo casamento, um Fla-Flu que divide muitas famílias. Irmãos... Mas mais ou menos. Não me lembro de ter morado com o Carlos ou a Eliane, embora ela tenha morado lá em casa quando eu era pequeno. Saiu quando eu tinha três anos para casar com o Ney - meu cunhado até hoje, embora eles tenham se separado. Carlão morou com meu avô e com tia Hilda, sempre tida como a que fomentava a rivalidade entre irmãos. O que nem sei se é verdade, hoje em dia...

O curioso é que, quando fomos crescendo, ficou claro que nós não éramos rivais de porra nenhuma. Podíamos ter posições políticas distintas, morar em cidades diferentes, ser de gerações diferentes, mas nos gostávamos, não importando quem era nossa mãe. Claro, eu e Vera tínhamos a impressão que a mãe de Carlos e Eliane era um monstro, já que se separou do meu pai quando eles tinham oito meses e dois anos e pouco - e a guarda ficou com o meu pai. Impressão fomentada pelos discursos de família, sempre prontos a desconstruir quem não estava presente ou quem era desconhecido - não tenho certeza, mas acho que minha mãe não conheceu pessoalmente dona Hermocinda Neith até o dia 6 de janeiro deste ano.

Mas isso não nos incomodava. Não havia, na nossa cabeça, a figura do "meio irmão". Com Carlão, eu ia ao Maracanã, bebia cerveja e jogava tênis no Aterro do Flamengo, acompanhado dos meus sobrinhos Léo (filho dele) e Renato (filho da Eliane, que era mais que um sobrinho, era uma espécie de irmão mais novo que eu tinha, mas que as fofocas familiares nos afastaram de forma dramática). Na casa da Eliane eu dormia quando tinha namorada na Ilha, ia dar uns rolés com o Renato e ocasionalmente até pegava a Raquel para levar na praia...

Família. irmãos. Filhos do mesmo pai.

As mães eram diferentes, e todas sofreram na mão do velho. O cara não era fácil. Mulherengo. Tinha ímpetos de bater nelas também. Coisas de homens antigos. Lamentável, mas era um cara de outro tempo, criado por um sujeito que nasceu em 1890. Não dá para comparar conosco.

Cheguei a conhecer a mãe do Carlos e da Eliane em um escritório que meu irmão mantinha na Senador Dantas. Foi um encontro gentil e ela me pareceu uma pessoa encantadora, apesar de todo o preconceito e doutrinação contra que tinham incutido em mim. Até evitei dizer à minha mãe que havia conhecido a dona Neith, fato que só revelei às minhas irmãs, por motivos óbvios - àquela altura da vida, já havíamos sacado que a campanha contra ela se tratava de rancores pretéritos e de outras pessoas... 

Eu, Carlão, Vera e Eliane ficamos juntos na Terra até setembro de 2006, quando um câncer levou a Vera para junto do papai. Em maio de 2012, foi a vez da Eliane, uma morte que eu só posso classificar como erro médico - e infelizmente não tenho como provar. Ficamos só os dois homens, sem pai, sem irmãs, com duas mães.

O curioso e o irônico desta trajetória é que, em maio de 2012, a mãe do Carlão deu sintomas fortíssimos de Alzheimer. Não houve outro jeito e meu irmão teve de interná-la em uma casa de apoio a idosos, na Ilha do Governador. Recebeu uma tremenda força do Renato e da Raquel, dois corajosos sobrinhos que haviam encarado a morte da mãe e o processo de demência da avó.

O que ninguém sabia era que mamãe iria dar, na mesma época, os primeiros sintomas de Alzheimer. Começou a não sair para comprar a própria comida, a não pagar contas, a expulsar as pessoas de casa. Era a antessala do problema. Mantivemos, eu e minhas sobrinhas Fernanda e Isabel, o controle que foi possível sobre os atos da mamãe. Depois, com as cuidadoras, o amparo necessário. Até que, este ano, eu e Fernanda optamos pela internação. 

E eis a ironia da vida: a primeira casa que pensamos foi a que estava a mãe dos meus irmãos. Sim, lá sabíamos que dona Neith estava bem. Eu, minha esposa e Fernanda fomos visitar e casa e, de cara, reconheci a mãe do Carlos. Estava sentada na varanda, sorrindo, impecavelmente vestida. Foi a senha para decidir pela casa.

Mas, e se dona Nair reconhecesse? 

Obviamente isso nos preocupou por segundos, mas lembramo-nos que ela não reconhece mais nem o próprio filho. Como iria reconhecer dona Neith?

Bem, hoje as duas estão vivendo na mesma casa. Na minha última visita, encontrei as duas sentadas na varanda, lado a lado, conversando o que dá para conversar quando se tem Alzheimer. Não sei se chegaram a saber quem são. Mas foi tocante vê-las ali. 

Cheguei a brincar com a Andreia, minha esposa: "papai manda nesta casa...". Ela, que é espírita mais ferrenha que eu, disparou: "Tá todo mundo aqui: ele, suas irmãs... Facilitou a vinda e a vida espiritual deles". Como sou um espírita meio do avesso, espero que sim. Mas não tenho certeza.

Minha certeza é uma só: estas duas trajetórias de duas mulheres casadas com o mesmo homem que se encontram na mesma casa para idosos esconde uma lição. E eu aprendi. Para que me exasperar ou me rivalizar com sombras do passado? Para que ganhar inimigos que não conheço ou que não me fizeram mal? Para que comprar as histórias dos outros? Estou livre de mais um peso e se a vida me colocar numa varanda ao lado de algum rival de juventude, isso não representa mais nada para mim, nem para minhas filhas. Porque eu não vou pregar a divisão, apenas a união. E porque o Alzheimer anula toda e qualquer rivalidade do passado e coloca todos nós no mesmíssimo patamar: o de seres humanos, mesmo com a compreensão parcialmente afetada.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

As duas mortes da minha mãe

Como muitos sabem, sou um apaixonado por futebol. Era meu sonho infantil ser jogador, mas a condição técnica nunca ajudou. Hoje, talvez, eu seria um volante marcador, raçudo, ganharia uns R$ 100 mil por mês e até iria para a Europa. Mas, nos anos 80 e 90, com os times com apenas um volante, quase sempre habilidoso, nem dava para arriscar. Por que falar de volante neste blog? É que, uma vez, ouvi o Falcão, volante/meia titular da seleção na Copa de 82, dizer que jogador de futebol morre duas vezes. Uma, quando para de jogar. A outra, quando sai do planeta de vez. O problema é que eles sentem a primeira morte até a segunda - falta o abraço do torcedor, o reconhecimento público das massas, a lembrança, o aplauso.

Curiosamente, minha mãe também vai morrer duas vezes, tal como o Falcão, mas ambas só para mim e para quem está vivendo este momento da gente. A segunda morte será a natural. A primeira ocorreu no dia 10 de janeiro. Neste dia, eu, minha mulher e minha filha fizemos a desmontagem parcial do apartamento em que ela morava, no Centro do Rio. Um capítulo da vida duplamente doloroso - pela condição da doença e pela semelhança com o que se faz sempre que alguém morre.

Na divisão das tarefas, enquanto elas embalavam algumas coisas que trouxemos para Brasília, eu tive de abrir gaveta por gaveta, armários, cômodas e estantes para desentocar memórias, papeis e muita tralha - e eis aí outra pista dada pelo Alzheimer: a quantidade de coisas inúteis que são acumuladas e de coisas úteis que são relegadas a segundo plano. Todas devidamente empoeiradas.

Dias antes da grande limpeza eu achei o CPF dela, que estava sumido e que motivou até uma queixa à polícia. Mamãe jurava que havia sido roubada ou perdido na rua, mas o guardou em uma caixinha, com os botões da roupa que usou em meu casamento. O desespero dela foi tanto que atormentou uma das netas, filha da minha falecida irmã, para que a acompanhasse à DP registrar uma ocorrência antes que se aproveitassem do nome dela.

Só que, àquela altura, de nada adiantaria ao suposto criminoso apoderar-se do CPF dela, pois mamãe estava com nome negativado nos sistemas de crédito por ter, simplesmente, transferido a pensão do HSBC para o Banco do Brasil sem fechar a conta corrente e sem quitar o pequeno débito do cheque especial, o que gerou uma dívida que eu acabei pagando, não sem inúmeras discussões com ela para explicar que ninguém a estava roubando - discussões essas em que eu sempre acabava me calando, pois mamãe não conseguia compreender que deixou um buraco na conta, com juros comendo o resto do limite de crédito. 

A tarde da limpeza geral foi ainda mais dura. Primeiro, porque se pareceu com todas as faxinas gerais que fizemos em nossa vida de mãe e filho. Sempre que isso ocorria, significava que iríamos mudar de casa - uma irritante rotina entre 1980 e 1988, quando me casei pela primeira vez e saí daquela vida de caracol, sempre com a casa nas costas. Neste período, me lembro, sem o menor esforço, de ter trocado a Praia da Guanabara pela Rua Cambaúba; a Cambaúba pela Rua Capitão Barbosa (todas na Ilha do Governador); a Capitão Barbosa pela Avenida Princesa Isabel (no Leme); a Princesa Isabel pela Rua Paulino Fernandes (em Botafogo); a Paulino Fernandes pela Rua Ribeiro Guimarães (Maracanã); a Ribeiro Guimarães pela Rua Comendador Bastos (de volta à Ilha); e a Comendador Bastos pela Praia de Botafogo, de onde saí para a minha vida, na Glória. Sete mudanças. Com a minha definitiva, oito. Demais da conta para um cara dos 15 aos 23 anos.

Além da semelhança com as mudanças do passado, havia um quê do fim de uma vida. Quando meu pai morreu, tivemos de desfazer o armário dele. É uma dor profunda. Você abre gaveta, tira papel, lê tudo, separa os que têm utilização, rasga os que não servem. Um ritual do passado se repetindo no presente. Com uma diferença: naquela época, papai havia morrido; mamãe está viva, embora imersa em seu mundo do Alzheimer.

A poeira me forçou a usar uma máscara de pintor, luvas e um arsenal de remédios para impedir crises alérgicas. Gaveta atrás de gaveta, fui depurando um mundo de memórias. Achei coisas ainda mais dolorosas: a partilha dos bens do meu pai, fotos da nossa família, desenhos escolares e alguns mimos que eu e minha irmã fizemos a ela. Um deles é este cartãozinho, da revista Recreio, que me lembro de ter recortado, colado e entregue a ela. Deste lado, o Gugu. Do outro, o Garibaldo, que dizia que "Mamãe está descansando". Ainda estava inexplicavelmente inteiro. 

É nestas horas que as lágrimas chegam nos olhos e atrapalham a visão e a alma. É uma pequena prova de carinho que resistiu a 40 anos de gavetas, pastas e poeira. Ali está meu amor de menino por ela. Guardá-lo mostra o amor dela por mim. 

Passo a passo, neste ritual do "desfazimento", você vai revisitando também a sua própria história. Fotos dela bem vestida, pôsteres, documentos pessoais (achei todos: identidade, o CPF ancestral, carteira de trabalho), anotações, contos, cartas da minha tia por ela, um arsenal de notícias do nosso passado. Tudo isso misturado com inúteis contas pagas de 2002, 2003, 2008, inutilidades armazenadas em pacotes gigantes. Tudo acumulado, misturado, mixado, como se a vida fosse a lembrança do que fomos com o que pagamos.

Li todos os papeis. Joguei dois sacos de 100 litros de lixo fora. Deixei para minhas sobrinhas tudo o que se relacionava à mãe delas - cartas, fotos, bilhetes. Esvaziei todas as gavetas e o espólio de memórias que me incluíam resumiram-se a duas pastas, entre documentos, retratos e algumas cartas que escrevi. Trouxe uma mesa, alguns livros, CDs, louças e copos e destinei ao lixo os móveis velhos e quebrados. Deixei os eletrodomésticos em bom estado para que a Fernanda escolhesse os que queria (bem como o microondas dela, que estava emprestado à mamãe), doei camas e colchões e fechei a porta. 

Mais uma vez, fechei a porta e fui embora. Agora, do meu apartamento (antes dela, eu, minha mulher e minha filha mais velha moramos ali) e das memórias alegres e angustiantes da minha família original, que foi desaparecendo com o tempo.

À noite, em casa, depois do banho, ao lado da família que formei, abri uma garrafa de vinho e, antes do primeiro gole, me pus a chorar. Chorar pela primeira morte da minha mãe: a morte das memórias, agora guardadas em pastas e na minha cabeça.    

Fim? Não. Haverá outra morte. Igualmente dolorida. Sem papeis para jogar fora, sem fotos para achar. Sem um tracinho de alegria. Só a morte fria. A morte final.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O olhar que perde o sentido

Ter um doente de Alzheimer na família não é uma novidade nos tempos modernos. E nem no passado. Antes, estes pacientes eram chamados de "caducos", "esclerosados". Sempre havia alguém para cuidar - uma tia que não casou, um irmão que não trabalha. Desgaste centralizado em um só, punição para paciente e cuidador e vida mansa para o restante do agrupamento familiar...

Os tempos modernos extinguiram isso. Não há pessoas mais disponíveis no círculo familiar. Todos trabalham ou estudam e têm suas vidas, o que é absolutamente correto. Ninguém é condenado a papel algum. Ficar solteiro não significa ficar para cuidar, a não ser de si mesmo. Cuidar é uma opção, não uma obrigação. Não há mais o cuidador da família, que vai passar a vida como escravo dos demais. Mas há cuidadores profissionais, assalariados e com todos os riscos e satisfações possíveis. Também há as casas de hospedagem, sucessoras mais humanas (em certos casos) dos asilos. Umas boas, outras ruins.  

E há a gente, a família do paciente de Alzheimer, com todos os encargos, precalços, preconceitos e especulações possíveis...

Este blog, que começa hoje, fala de um filho (e de uma sobrinha e algumas netas) que tem uma mãe com Alzheimer. Não vou dar dicas, não vou dar receitas, vou apenas escrever. Escrever de dor, de alegria, de tristeza, de vida e de fim de vida. Porque é isso que o Alzheimer é, por enquanto: um jeito de terminar a vida.

Não é um jeito bom ou ruim, merecido ou imerecido. É um jeito. Só. E a gente que está em volta tem de se adaptar a ele. 

Minha mãe é esta mulher que está na foto, tirada no dia do meu segundo casamento, há 21 anos. Repare no olhar vivo e alegre - que, aliás, contrasta tremendamente com o ar de tristeza que ela ostentava no meu primeiro casamento, quando foi vestida de preto para uma cerimônia às 10h de um dia de janeiro... 

Pois é, este olhar vivo é a primeira coisa que vi morrer depois do diagnóstico oficial do Alzheimer. O olhar faiscante de dona Nair, que encantou meu pai, hoje não existe mais. É vazio. Não precisa nem mais de óculos, que ela desistiu de usar - e não por ter melhorado dos problemas na vista. Ela não os usa porque tanto faz ver ou não ver. Tudo é uma imensa sombra, um vazio que só é quebrado vez ou outra, quando algo ou alguém a desperta da fase de esquecimento progressivo em que está mergulhada há dois anos.

O olhar vazio não dói nela. Dói na gente. No filho, nas netas... Algumas, como minha filha Valentina, não conseguem mais estar por perto. Nunca foram muito ligadas. A desconexão agora nem é tanta - basta a Valentina se apresentar como neta que a mamãe sorri, dá beijo, mas daqui a pouco esquece-se outra vez. O problema, no caso da minha filha, é que ela não se sente confortável por não ter construído uma história com a avó, algo que todas as outras três netas conseguiram. E dói na bichinha. Ô, como dói...

Como dói em mim, também. Nós tivemos história, sim. Mas nunca fomos o que você pode chamar de mãe e filho 100% unidos. Tivemos brigas, divergências. Muitas, por sinal. Sempre achei que ela amou mais minha irmã, cuja morte, em 2006, detonou nela tudo o que havia de mais machucado e magoado. Hoje entendo que deve ser uma dor de matar. E mais: compreendo que a gente ama os filhos de formas distintas, um amor para cada um, adequado às necessidades e fragilidades. Amor não se mede por litro, centímetro ou quilo. Amor sente-se. E pronto.

Mas minha dor é a mesma da Valentina: a de não significar mais nada e de não ter mais como mudar isso. 

Dói só na gente. Não dói, por exemplo, em outras pessoas. Normal. Cada um sabe onde aperta o calo. Aqui dói porque o olhar perdido parece ter me perdido, e eu sinto que perdi algumas chances de dizer algumas coisas boas que sempre pensei dela.
Decidi, para compensar, fazer algumas coisas, por mim e por ela.

Vou visitá-la mais vezes. É remorso? É, também. Me afastei muito dela depois de 2006, quando seu temperamento ficou mais irascível. Evitava atender os telefonemas, que quase sempre acabavam em ofensas que eu não merecia ou compreendia - pois raramente falava qualquer coisa. Hoje entendo que era a antessala do Alzheimer. Não me culpo. A ignorância não é nada mais que a falta de luz. Eu ignorava o que ocorria e só me centrava na minha dor.

Nestas visitas, vou dedicar-me a contar boas histórias da vida dela, a abraçá-la mais, a beijá-la mais. A sair e a voltar quantas vezes for necessário, pois um segundo pode me transformar, em sua mente, de um filho a um homem que quer assediá-la - e a culpa não é dela, nem minha.

Mas, além destas visitas, decidi escrever este blog contando minha experiências e trazendo fotos e até uns contos que ela escreveu e nunca publicou. Os textos dela são simples, mas que dizem muito de quem éramos como pessoas e como éramos como família. Uma família que, hoje, não existe mais, com pai e irmã no céu e mamãe a caminho dele.

Como herdeiro deste "espólio" de emoções, me resta apenas desfilá-las pela internet. Muita coisa vai vir aqui. Umas boas, outras ruins. Algumas vão ajudar quem está na mesma que eu. Outras vão entristecer. Outras não significarão nada. Faz parte. É o movimento da vida. Tudo é relativamente importante.

Boa tarde para você que encara este desafio. Força e luz!
Boa tarde para você que não o encara. Que ele nunca chegue em sua vida!